Racismo e infância: uma receita de sofrimento e reprodução de conceitos

Racismo e infância: uma receita de sofrimento e reprodução de conceitos

Experiências que marcaram
Refletir sobre o tema em questão me remeteu a duas experiências que marcaram bastante a minha vida. A primeira ocorreu na minha infância. Por volta dos 9 anos de idade eu estava brincando com uma de minhas primas na casa de uma vizinha amiga da família, a dona Josefina. Ela tinha um filho, chamado Juninho, de idade aproximada à nossa. Gostávamos muito de brincar juntos. Certo dia, entretanto, durante a brincadeira Juninho disse à sua mãe:

— “Mamãe, quando eu crescer vou casar com Maria”.

No mesmo instante a mãe o repreendeu e lhe disse:

— “Com Maria, não… ela é pretinha! Veja se escolhe uma branquinha para entrar na nossa família”.

Aquele comentário encheu meu coração com uma tristeza profunda, ainda que não tivesse clareza do significado exato daquelas palavras. Aquela mãe expressou uma opinião racista de forma tão natural que demonstrava total falta de noção a respeito da dor que tal ponto de vista poderia causar em todas as crianças envolvidas. Não havia vergonha ou brincadeira no tom usado, no fundo, aquelas palavras expressavam um sentimento de desvalorização e falta de respeito a uma criança. E tal discriminação foi baseada simplesmente em características biológicas e traços físicos, como a cor da pele. Uma criança foi vítima de racismo por um adulto.

A segunda experiência que vivenciei aconteceu durante uma viagem que fiz à África do Sul, país com forte tradição do apartheid, regime de segregação racial. Há vários anos, quando meu filho tinha oito anos de idade, passamos uns dias de férias num resort. Haviam muitas famílias naquele lugar, mas a grande maioria dos frequentadores era de pessoas brancas. Nós éramos uns dos poucos negros naquele ambiente. As crianças estavam brincando na piscina e de repente começou uma discussão entre dois meninos. Um deles disse com tom de voz áspero, em forma de xingamento:

— “Você é negro, não devia estar aqui”.

Houve um silêncio total no ambiente enquanto o menino ofendido saia chorando da piscina. Os pais dos dois meninos demonstraram surpresa e um grande desconforto diante daquela discussão “infantil” e retiraram-se do ambiente o mais rápido possível. Uma criança havia cometido um ato de injúria racial contra outra criança.

As duas experiências relatadas nos fazem refletir sobre os motivos de tal visão de mundo deturpada e preconceituosa ainda permanecer tão presente em nossa sociedade. Precisamos levar nossa sociedade a refletir sobre o que os pais têm ensinado aos filhos seja por meio de palavras ou de ações. Portanto, em que está baseado o valor de uma pessoa? O valor de uma pessoa deve ser estipulado por sua raça, etnia e traços físicos; por sua classe social, por suas conquistas ou por aquilo que ela acrescenta à sociedade?

Tal pai, tal filho… tal mãe, tal filha?

A infância é um período de vital importância para a formação do caráter da pessoa, estabelecimento de vínculos, aprendizagem de princípios e valores que afetarão todo o seu desenvolvimento na vida. Durante a infância e a adolescência as crianças aprenderão como tratar o outro e como desenvolver relacionamentos de forma sadia. Portanto, aquilo que receberem de suas famílias será reproduzido ao longo de suas vidas.

Há crianças que sofrem por causa do racismo e, ao mesmo tempo, há crianças que são levadas e ensinadas a reproduzirem preconceito, discriminação racial e a proferirem injúria racial contra aqueles que têm características físicas diferentes das suas. Isso tem acontecido por muito tempo, diariamente com muitas crianças em todos os lugares e ambientes, incluindo os das igrejas.

A criança, especialmente em sua mais tenra idade, ainda não tem maturidade emocional para lidar com essas questões, tanto quando são vítimas como quando cometem atos de racismo e injúria racial. Por isso, o grande questionamento da reflexão levantada seria o que pode ser feito para minimizar a dor daquelas que sofrem e para não influenciar outras crianças a cometerem atos violentos de racismo.

Crianças precisam de oportunidades para ouvir e serem ouvidas. Através do ato de falar e expor sua própria opinião e também de ouvir a opinião de outros, as crianças são orientadas a fim de que se desenvolvam de forma saudável, valorizando e respeitando a todos, livres de preconceitos absorvidos por uma sociedade que perpetua uma estrutura racista em sua dinâmica de relacionamentos. Assim sendo, é na família, na escola, na igreja, nas redes sociais, e em qualquer outro espaço que elas frequentem que esse tema precisa ser abordado com sabedoria, de forma honesta e antidiscriminatória.

Qual seria o papel da igreja em meio a tudo isso?

É necessário questionar como a igreja tem se posicionado para minimizar o impacto do racismo nas crianças e nas pessoas de maneira geral.

O racismo é uma forma de violência e como tal atinge também às crianças de maneira covarde. O tratamento desrespeitoso a alguém por causa de sua diferença étnica ou racial é considerado como crime na legislação brasileira e em muitos outros países.

Não gostamos de pensar que existe racismo nas igrejas, porém, infelizmente isso é uma realidade. Este tipo de comportamento contraria todos os ensinamentos da Palavra de Deus, que diz: “porque para Deus não há acepção de pessoas” (Romanos 2.11).

Certa ocasião, os discípulos queriam impedir as crianças de irem até Jesus (Mateus 19.13-15). Diante dessa ação discriminatória dos discípulos com pessoas, por serem crianças, Jesus os confrontou e os repreendeu. Jesus chamou as crianças, as acolheu e as abraçou. É esta atitude que se requer dos seguidores de Jesus diante das situações violentas, incluindo atos de racismo ou injuria contra as pessoas em qualquer estágio da vida.

Racismo é expressão de agressividade e redução do outro, precisa ser enfrentado e combatido. Há muitas crianças, adolescentes, jovens e adultos marcados em sua alma, e até mesmo em seus corpos, como consequência do tratamento racista que receberam em sua infância ou ao longo da vida. Alguns nem mesmo estão conscientes do que vivenciaram, e apenas passam a se conscientizar à medida que compreendem o significado de tal ato.

A igreja pode fazer toda a diferença na sociedade demonstrando de maneira prática as atitudes de Jesus diante das injustiças, desigualdades, desrespeito e desvalorização do ser humano. A igreja é um importante ambiente de aprendizagem e pode proporcionar muitas oportunidades para estimular a boa convivência das crianças e de todas as pessoas independente de etnias.

Que a igreja não reproduza nem perpetue um comportamento violento e danoso ao desenvolvimento humano e da sociedade em geral. Que o legado eclesiástico para a presente e para as novas gerações seja viver e agir à semelhança do que Jesus nos ensinou: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (Mateus 22.37-39).

• Terezinha Candieiro é mestre em Artes no Programa de Desenvolvimento Integral; pós-graduada em Projetos Sociais – gestão e perspectivas; licenciada em Pedagogia com especialização em Magistério e Orientação Educacional; bacharel em Teologia com especialização em Educação Religiosa. Coordenadora geral do PEPE Internacional da Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasileira.

Publicado originalmente no portal da Editora Ultimato: http://bit.ly/racismo-infacia

Quem de fato tem a prioridade absoluta no Brasil?

Quem de fato tem a prioridade absoluta no Brasil?

Em 2020, quando completamos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, é inadmissível que crianças e adolescentes do Brasil ainda sofram tanto com a quebra de seus direitos mais básicos, como aconteceu com a pequena Menina Capixaba, violentada dentro de casa, desrespeitada por autoridades, ameaçada por religiosos, despida por uma youtuber, insultada por professora, padre, condenada por pessoas desinformadas e cruéis.

O que será tão difícil de ser compreendido no princípio do “interesse superior da criança”? Será que fracassamos em comunicar à sociedade e ao Estado o que significa dar prioridade absoluta para as crianças e os adolescentes, pessoas vulneráveis e em desenvolvimento?

O Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 já determinava tão claramente os direitos e garantias fundamentais das crianças e adolescentes, com responsabilidade compartilhada entre Estado, famílias e sociedade. O ECA, instrumento legal reconhecido internacionalmente, traz então o caminho para se concretizar o Artigo 227 da Constituição Federal. No entanto, ainda hoje, percebemos atitudes em relação às crianças e adolescentes brasileiros, que chocam e machucam barbaramente, a exemplo dos embaixadores pró vida, que defendem o nascimento, ignorando a vida.

O que impede as pessoas de perceberem que estão incluídas no Art. 4º do ECA como responsáveis e obrigadas, como família, membro da comunidade, da sociedade em geral, e do poder público, a assegurarem, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes? Ou seja, os meus filhos, os filhos dos outros, os órfãos, os brancos ou negros, indígenas e quilombolas, com deficiência ou não, pobres ou ricos, autores de atos infracionais, pequenos ou grandes, entre tantos outros, são todos e todas nossa responsabilidade constitucional e moral.

Talvez se o Art. 5º do ECA fosse efetivado, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, por qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a situação mudasse no nosso país. Talvez aquele tio não se sentisse tão livre para usar uma criança desprotegida para satisfazer seus desejos perversos; talvez os religiosos não se achassem no direito de cobrar e atacar uma menina de dez anos, vítima de violência desde os seis, e ao contrário, representariam o Cristo compassivo e restaurador; a Sara Winter não quebraria os direitos de privacidade da criança, achando que o que faz é admissível; uma “professora” não teria a audácia para dizer a estupidez de que a criança deveria ter chorado e falado para a mãe, e que há 4 anos tinha uma vida sexual ativa; o padre não diria que a criança, de seis anos, consentiu a violência sobre si, “compactuou com tudo…”, “estava gostando…”; órgãos e profissionais que deveriam ser competentes para proteger, não violentariam a vítima pressionando-a; as pessoas em geral não vomitariam suas opiniões cruéis e destruidoras.

Tendo participado, representando o Projeto Calçada da Lifewords e o CONANDA na Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, da construção da Lei que instituiu a Escuta Especializada (Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017) que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, é muito frustrante e desanimador tomar conhecimento de mais uma criança revitimizada pelo sistema.

É verdade contudo, que as lindas e muitas manifestações de carinho e compaixão por parte da sociedade, por profissionais, por Cristãos que vivem o Evangelho, a rede de proteção intervindo e agindo com eficiência, nos conforta e dá esperança. Mas não podemos deixar de prestar atenção e dar voz ao que talvez esteja no grito silencioso da Menina Capixaba: crianças e adolescentes são violados diariamente, assassinados, aprisionados, negligenciados, impedidos de usufruir de oportunidades igualitárias de desenvolvimento, ignorados da norma constitucional da prioridade absoluta dos seus direitos e melhor interesse.

Ainda há tempo para mudarmos; ainda há tempo para assumirmos responsabilidade; ainda há tempo para deixarmos de lado nossas convicções morais e interesses pessoais, para dar lugar a quem deve ocupar a prioridade deste país – as crianças e os adolescentes.

Clenir Xavier, Diretora Internacional do Projeto Calçada, Lifewords

Adoção não precisa ser a única opção

Adoção não precisa ser a única opção

Feche os olhos e imagine uma criança que foi adotada. Como ela é? Qual era o contexto onde vivia antes de sair do lugar onde nasceu? Como são seus pais biológicos? Em que trabalham? Qual é a cor de sua pele? É muito possível e provável que você tenha, automaticamente, pensado em uma criança negra, pobre e vinda da periferia. (mais…)