O Olhar para a deficiência paralisa, mas o olhar para as possibilidades nos impulsiona

O Olhar para a deficiência paralisa, mas o olhar para as possibilidades nos impulsiona

Não estamos preparados para receber uma criança com deficiência, os pais, avós, tios e professores, todos se deparam com uma situação desafiadora quando são confrontados com essa realidade. Na maioria das vezes não sabemos como reagir e nos sentimos incapacitados para atender às necessidades que se apresentam diante de nós. A primeira reação que pode se apresentar é um sentimento de piedade, ficamos tristes por achar que aquela criança está fadada a uma vida de perdas, não sabemos como interagir, não sabemos nem mesmo o que esperar.

Um dos princípios fundamentais que apendi ao longo de décadas de trabalho com Educação Especial foi que ao me deparar com uma criança com deficiência é necessário desviar o foco do que lhe falta, e estar atentos às possibilidades que aquela pessoa que está diante de nós apresenta. Não podemos nos deixar sucumbir ao sentimento de piedade e superproteção, não dá para dizer que não somos capacitados para interagir, a criança está ali, diante de nós e nossa responsabilidade é dar uma resposta às suas necessidade. Quando enxergamos além da deficiência conseguimos ver as possibilidades, a deficiência nos paralisa mas as possibilidades nos inspiram e impulsionam para buscarmos novos caminhos, seja em relação ao aprendizado ou ao convívio social.

Tendo trabalhado por muito tempo com pessoas com deficiência, tive oportunidades de atuar junto a crianças e adolescentes surdos, crianças com Deficiência Intelectual e pessoas cegas ou com baixa visão. Não havia atuado, nem me sentia motivada a atuar com crianças com paralisia cerebral¹ ou com múltiplas deficiências. Quando via colegas de trabalho interagindo oralmente com crianças com paralisia cerebral, que não andavam, não falavam, algumas nem sequer conseguiam dar um aceno, crianças que aparentemente não entendiam nada do que acontecia ao seu redor, eu pensava que aquelas colegas estavam falando sozinhas, que não havia nenhum tipo de correspondência por parte da criança.

Finalmente tive oportunidade de trabalhar com alunos com paralisia cerebral, todos eles me surpreendiam a cada encontro, uma delas, em especial, me marcou muito porque a escola afirmava que a criança não falava e não compreendia a linguagem oral, embora a mãe afirmasse o contrário. Vou chama-la de Isa, ela estava então com 8 anos. Essa criança não andava e, aparentemente não falava, ela apresentava paralisia cerebral com movimentos involuntários que a obrigavam a ficar literalmente presa na cadeira de rodas para que não escorregasse. Comecei o trabalho com a Isa, e a cada dia me surpreendia com suas possibilidades, um dia ela me contou algo sobre sua família, era necessário um esforço muito grande para que as palavras fossem articuladas, a fala era difícil por sua condição coreoatetóide², porém pude perceber que sua linguagem era perfeitamente estruturada. Quando ela percebia que eu não havia compreendido sua fala, ela recomeçava a frase do início, percebi que se eu repetisse a frase que ela havia dito e só parasse na palavra que eu não havia compreendido a comunicação fluía mais facilmente. Em outra oportunidade eu havia planejado que ela usasse o computador para iniciar uma possibilidade de escrita, mais uma vez Isa me surpreendeu quando depois de um esforço enorme conseguiu digitar algumas letras aleatórias, muito cansada e quase caindo da cadeira ela me pediu para deixa-la tentar mais uma vez, ela mesma indicava a posição que facilitava a atividade.

Jamais poderemos prever o nível de desenvolvimento de uma criança baseados apenas nas características apresentadas por uma deficiência.

Cada pessoa é única, cada um de nós reage de forma diferente diante das situações que nos são apresentadas, com as pessoas com deficiência também é assim, não é porque uma criança apresenta, por exemplo, Síndrome de Down, que ela vai reagir da mesma forma que uma outra da mesma idade que também apresente a Síndrome. Não podemos rotular, não podemos alimentar ideias estereotipadas a respeito das pessoas com deficiência, todas elas tem direito a oportunidades para que desenvolvam ao máximos suas potencialidades.

Perceber a deficiência como uma particularidade ou como fazendo parte da diversidade humana é um grande desafio. Precisamos ter em mente que a criança com deficiência é uma pessoa que tem direitos como qualquer outra, mas que acima de tudo precisa ter assegurada sua acessibilidade e participação em todos os espaços. Precisamos acreditar e investir, dando ferramentas e possibilidades para que cada criança com deficiência desenvolva ao máximo seu potencial e alcance seu lugar na sociedade.

Sonia Cristina de Medeiros Rocha
Fonoaudióloga, Professora especialista em Atendimento Educacional Especializado e membro do Conselho Consultivo da Lifewords Brasil.


¹Paralisia cerebral é uma lesão permanente e não progressiva do sistema nervoso em desenvolvimento que afeta o tônus, os reflexos e as posturas, comprometendo o desenvolvimento motor do indivíduo. (https://residenciapediatrica.com.br/detalhes/342/paralisia%20cerebral)

²A paralisia cerebral coreoatetoide compreende uma alteração neurológica central, não evolutiva, que compromete o movimento e a postura, sendo caracterizada principalmente pela presença de movimentos involuntários. A criança com paralisia cerebral coreoatetoide pode apresentar movimentação involuntária de língua e de mandíbula, interferindo na dinâmica da deglutição e da fala. (https://www.scielo.br/pdf/rcefac/v12n2/37-09.pdf)

Racismo e infância: uma receita de sofrimento e reprodução de conceitos

Racismo e infância: uma receita de sofrimento e reprodução de conceitos

Experiências que marcaram
Refletir sobre o tema em questão me remeteu a duas experiências que marcaram bastante a minha vida. A primeira ocorreu na minha infância. Por volta dos 9 anos de idade eu estava brincando com uma de minhas primas na casa de uma vizinha amiga da família, a dona Josefina. Ela tinha um filho, chamado Juninho, de idade aproximada à nossa. Gostávamos muito de brincar juntos. Certo dia, entretanto, durante a brincadeira Juninho disse à sua mãe:

— “Mamãe, quando eu crescer vou casar com Maria”.

No mesmo instante a mãe o repreendeu e lhe disse:

— “Com Maria, não… ela é pretinha! Veja se escolhe uma branquinha para entrar na nossa família”.

Aquele comentário encheu meu coração com uma tristeza profunda, ainda que não tivesse clareza do significado exato daquelas palavras. Aquela mãe expressou uma opinião racista de forma tão natural que demonstrava total falta de noção a respeito da dor que tal ponto de vista poderia causar em todas as crianças envolvidas. Não havia vergonha ou brincadeira no tom usado, no fundo, aquelas palavras expressavam um sentimento de desvalorização e falta de respeito a uma criança. E tal discriminação foi baseada simplesmente em características biológicas e traços físicos, como a cor da pele. Uma criança foi vítima de racismo por um adulto.

A segunda experiência que vivenciei aconteceu durante uma viagem que fiz à África do Sul, país com forte tradição do apartheid, regime de segregação racial. Há vários anos, quando meu filho tinha oito anos de idade, passamos uns dias de férias num resort. Haviam muitas famílias naquele lugar, mas a grande maioria dos frequentadores era de pessoas brancas. Nós éramos uns dos poucos negros naquele ambiente. As crianças estavam brincando na piscina e de repente começou uma discussão entre dois meninos. Um deles disse com tom de voz áspero, em forma de xingamento:

— “Você é negro, não devia estar aqui”.

Houve um silêncio total no ambiente enquanto o menino ofendido saia chorando da piscina. Os pais dos dois meninos demonstraram surpresa e um grande desconforto diante daquela discussão “infantil” e retiraram-se do ambiente o mais rápido possível. Uma criança havia cometido um ato de injúria racial contra outra criança.

As duas experiências relatadas nos fazem refletir sobre os motivos de tal visão de mundo deturpada e preconceituosa ainda permanecer tão presente em nossa sociedade. Precisamos levar nossa sociedade a refletir sobre o que os pais têm ensinado aos filhos seja por meio de palavras ou de ações. Portanto, em que está baseado o valor de uma pessoa? O valor de uma pessoa deve ser estipulado por sua raça, etnia e traços físicos; por sua classe social, por suas conquistas ou por aquilo que ela acrescenta à sociedade?

Tal pai, tal filho… tal mãe, tal filha?

A infância é um período de vital importância para a formação do caráter da pessoa, estabelecimento de vínculos, aprendizagem de princípios e valores que afetarão todo o seu desenvolvimento na vida. Durante a infância e a adolescência as crianças aprenderão como tratar o outro e como desenvolver relacionamentos de forma sadia. Portanto, aquilo que receberem de suas famílias será reproduzido ao longo de suas vidas.

Há crianças que sofrem por causa do racismo e, ao mesmo tempo, há crianças que são levadas e ensinadas a reproduzirem preconceito, discriminação racial e a proferirem injúria racial contra aqueles que têm características físicas diferentes das suas. Isso tem acontecido por muito tempo, diariamente com muitas crianças em todos os lugares e ambientes, incluindo os das igrejas.

A criança, especialmente em sua mais tenra idade, ainda não tem maturidade emocional para lidar com essas questões, tanto quando são vítimas como quando cometem atos de racismo e injúria racial. Por isso, o grande questionamento da reflexão levantada seria o que pode ser feito para minimizar a dor daquelas que sofrem e para não influenciar outras crianças a cometerem atos violentos de racismo.

Crianças precisam de oportunidades para ouvir e serem ouvidas. Através do ato de falar e expor sua própria opinião e também de ouvir a opinião de outros, as crianças são orientadas a fim de que se desenvolvam de forma saudável, valorizando e respeitando a todos, livres de preconceitos absorvidos por uma sociedade que perpetua uma estrutura racista em sua dinâmica de relacionamentos. Assim sendo, é na família, na escola, na igreja, nas redes sociais, e em qualquer outro espaço que elas frequentem que esse tema precisa ser abordado com sabedoria, de forma honesta e antidiscriminatória.

Qual seria o papel da igreja em meio a tudo isso?

É necessário questionar como a igreja tem se posicionado para minimizar o impacto do racismo nas crianças e nas pessoas de maneira geral.

O racismo é uma forma de violência e como tal atinge também às crianças de maneira covarde. O tratamento desrespeitoso a alguém por causa de sua diferença étnica ou racial é considerado como crime na legislação brasileira e em muitos outros países.

Não gostamos de pensar que existe racismo nas igrejas, porém, infelizmente isso é uma realidade. Este tipo de comportamento contraria todos os ensinamentos da Palavra de Deus, que diz: “porque para Deus não há acepção de pessoas” (Romanos 2.11).

Certa ocasião, os discípulos queriam impedir as crianças de irem até Jesus (Mateus 19.13-15). Diante dessa ação discriminatória dos discípulos com pessoas, por serem crianças, Jesus os confrontou e os repreendeu. Jesus chamou as crianças, as acolheu e as abraçou. É esta atitude que se requer dos seguidores de Jesus diante das situações violentas, incluindo atos de racismo ou injuria contra as pessoas em qualquer estágio da vida.

Racismo é expressão de agressividade e redução do outro, precisa ser enfrentado e combatido. Há muitas crianças, adolescentes, jovens e adultos marcados em sua alma, e até mesmo em seus corpos, como consequência do tratamento racista que receberam em sua infância ou ao longo da vida. Alguns nem mesmo estão conscientes do que vivenciaram, e apenas passam a se conscientizar à medida que compreendem o significado de tal ato.

A igreja pode fazer toda a diferença na sociedade demonstrando de maneira prática as atitudes de Jesus diante das injustiças, desigualdades, desrespeito e desvalorização do ser humano. A igreja é um importante ambiente de aprendizagem e pode proporcionar muitas oportunidades para estimular a boa convivência das crianças e de todas as pessoas independente de etnias.

Que a igreja não reproduza nem perpetue um comportamento violento e danoso ao desenvolvimento humano e da sociedade em geral. Que o legado eclesiástico para a presente e para as novas gerações seja viver e agir à semelhança do que Jesus nos ensinou: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (Mateus 22.37-39).

• Terezinha Candieiro é mestre em Artes no Programa de Desenvolvimento Integral; pós-graduada em Projetos Sociais – gestão e perspectivas; licenciada em Pedagogia com especialização em Magistério e Orientação Educacional; bacharel em Teologia com especialização em Educação Religiosa. Coordenadora geral do PEPE Internacional da Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasileira.

Publicado originalmente no portal da Editora Ultimato: http://bit.ly/racismo-infacia