Quem de fato tem a prioridade absoluta no Brasil?

Quem de fato tem a prioridade absoluta no Brasil?

Em 2020, quando completamos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, é inadmissível que crianças e adolescentes do Brasil ainda sofram tanto com a quebra de seus direitos mais básicos, como aconteceu com a pequena Menina Capixaba, violentada dentro de casa, desrespeitada por autoridades, ameaçada por religiosos, despida por uma youtuber, insultada por professora, padre, condenada por pessoas desinformadas e cruéis.

O que será tão difícil de ser compreendido no princípio do “interesse superior da criança”? Será que fracassamos em comunicar à sociedade e ao Estado o que significa dar prioridade absoluta para as crianças e os adolescentes, pessoas vulneráveis e em desenvolvimento?

O Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 já determinava tão claramente os direitos e garantias fundamentais das crianças e adolescentes, com responsabilidade compartilhada entre Estado, famílias e sociedade. O ECA, instrumento legal reconhecido internacionalmente, traz então o caminho para se concretizar o Artigo 227 da Constituição Federal. No entanto, ainda hoje, percebemos atitudes em relação às crianças e adolescentes brasileiros, que chocam e machucam barbaramente, a exemplo dos embaixadores pró vida, que defendem o nascimento, ignorando a vida.

O que impede as pessoas de perceberem que estão incluídas no Art. 4º do ECA como responsáveis e obrigadas, como família, membro da comunidade, da sociedade em geral, e do poder público, a assegurarem, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes? Ou seja, os meus filhos, os filhos dos outros, os órfãos, os brancos ou negros, indígenas e quilombolas, com deficiência ou não, pobres ou ricos, autores de atos infracionais, pequenos ou grandes, entre tantos outros, são todos e todas nossa responsabilidade constitucional e moral.

Talvez se o Art. 5º do ECA fosse efetivado, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, por qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a situação mudasse no nosso país. Talvez aquele tio não se sentisse tão livre para usar uma criança desprotegida para satisfazer seus desejos perversos; talvez os religiosos não se achassem no direito de cobrar e atacar uma menina de dez anos, vítima de violência desde os seis, e ao contrário, representariam o Cristo compassivo e restaurador; a Sara Winter não quebraria os direitos de privacidade da criança, achando que o que faz é admissível; uma “professora” não teria a audácia para dizer a estupidez de que a criança deveria ter chorado e falado para a mãe, e que há 4 anos tinha uma vida sexual ativa; o padre não diria que a criança, de seis anos, consentiu a violência sobre si, “compactuou com tudo…”, “estava gostando…”; órgãos e profissionais que deveriam ser competentes para proteger, não violentariam a vítima pressionando-a; as pessoas em geral não vomitariam suas opiniões cruéis e destruidoras.

Tendo participado, representando o Projeto Calçada da Lifewords e o CONANDA na Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, da construção da Lei que instituiu a Escuta Especializada (Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017) que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, é muito frustrante e desanimador tomar conhecimento de mais uma criança revitimizada pelo sistema.

É verdade contudo, que as lindas e muitas manifestações de carinho e compaixão por parte da sociedade, por profissionais, por Cristãos que vivem o Evangelho, a rede de proteção intervindo e agindo com eficiência, nos conforta e dá esperança. Mas não podemos deixar de prestar atenção e dar voz ao que talvez esteja no grito silencioso da Menina Capixaba: crianças e adolescentes são violados diariamente, assassinados, aprisionados, negligenciados, impedidos de usufruir de oportunidades igualitárias de desenvolvimento, ignorados da norma constitucional da prioridade absoluta dos seus direitos e melhor interesse.

Ainda há tempo para mudarmos; ainda há tempo para assumirmos responsabilidade; ainda há tempo para deixarmos de lado nossas convicções morais e interesses pessoais, para dar lugar a quem deve ocupar a prioridade deste país – as crianças e os adolescentes.

Clenir Xavier, Diretora Internacional do Projeto Calçada, Lifewords

TÃO PERTO, MAS TÃO LONGE.

TÃO PERTO, MAS TÃO LONGE.

Era uma vez um menino que ainda pequenino
Foi escolhido pra morar na casa de Deus
Mas ele não sabia que um profeta seria
Toda a Israel a ele obedeceria
Quando foi dormir, uma voz então ouviu:
Samuel, Samuel, Deus te chama lá do céu
Samuel, Samuel, sê profeta de Israel;
Samuel – Aline Barros

“Samuel cresceu e teve dois filhos: Joel e Abia. A semelhança do seu pai, também foram juízes em Israel. Mas eles não seguiram as mesmas pegadas de seu pai, porém se inclinaram à avareza, aceitavam suborno e perverteram o direito dos mais vulneráveis.” I Samuel 8

Há um hiato que perpassa toda a história de Samuel e dos seus filhos. Essa lacuna é o simples fato de que Samuel não teve infância. Desde pequeno assumiu funções sacerdotais e religiosas, o que o mantinha por demais ocupado e assoberbado. Tais atribuições o tornaram profeta, sacerdote e juiz, mas não o ensinaram a ser pai. Ele não sabia ocupar essa função.

A narrativa bíblica e a canção mencionada no início desse texto não revelam que tipo de relação foi construída ou não entre pai e filhos, mas quando todos os líderes de Israel se reuniram e foram conversar com Samuel, em Ramá, o que foi dito é claro: os seus filhos não seguem o seu exemplo!

Tanta dedicação à Deus, não impediu que Samuel tivesse filhos desonestos. Tão perto, mas tão longe dos seus filhos.

O dilema de Samuel reverbera em vários personagens masculinos do Antigo Testamento: a dificuldade de compreenderem que a paternidade é um ato efetivo e social.

Mas tenho aprendido que a paternidade é socialmente muito mais fácil do que se pode imaginar, o grande desafio para nós homens é a paternagem.

A paternidade engloba um homem que se tornou biologicamente pai de alguém. Já a paternagem significa um homem que decidiu dar afeto, presença e envolvimento emocional aos seus filhos/filhas (biológicos ou não), em uma busca pela participação ativa no desenvolvimento dessa criança.

Segundo o terapeuta Guy Corneau, “é absolutamente necessário que os homens comecem a afagar seus filhos, assim abrirão para eles a porta da sensibilidade, e ao fazê-lo, descobrirão também sua própria sensibilidade. Os homens também têm um corpo, e as pessoas têm necessidade de ser tocadas para manter seu equilíbrio e saber que existem.” Homens que não tenham medo de estabelecerem conexões mais profundas e estáveis com seus filhos/filhas.

Pai ausente, filho carente é o título do livro de Corneau onde o próprio autor afirma que a origem dos problemas mais comuns entre homens é a ausência física e afetiva na relação com seus filhos/filhas.

Por que os homens têm medo da intimidade? Por que alguns recorrem à agressividade?Por que muitos se sentem levados a assumir o papel de heróis/eternos adolescentes/ conquistadores? Estas perguntas (e as suas possíveis respostas) revelam o que pode estar oculto na história de Samuel e
os seus filhos, Joel e Abia.

Eu poderia aprofundar essa questão a partir dos dados da PNAD/2015 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que revelou que, das mais de setenta milhões de família em nosso país, 42% são lideradas por mulheres, e das trinta milhões de famílias que têm mulheres como chefe, apenas um terço têm um parceiro ao seu lado. O número de lares comandados por mulheres só
aumenta a cada ano; porém, vou ficar por aqui.

Homens como Samuel (que não são poucos) têm um exercício hercúleo pela frente: assumirem definitivamente os seus postos em conjunto com a suas esposas, na construção afetiva e efetiva da suas paternagens.

Vladimir de Oliveira | Coordenador Pedagógico/Articulador Social da Casa Semente.